O primeiro lugar das eleições moçambicanas para a Presidência da República, a Assembleia da República e as assembleias provinciais foi, claramente, para quem tinha mais hipóteses, pois que já se encontrava no poder, dominando o aparelho de Estado e os órgãos estatais de comunicação social. Mas o processo deixou muito a desejar.
Jorge Heitor
A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), de Eduardo Mondlane, Samora Machel, Joaquim Chissano e Armando Emílio Guebuza, ganhou as eleições gerais de 15 de Outubro, pelo que vai ficar com o maior número de deputados e com um dos seus homens, Filipe Jacinto Nyusi, na Presidência da República. Nem outra coisa seria de esperar, sabendo nós como são as coisas na generalidade da África Austral, onde nos últimos 20 anos não tem havido na maior parte dos países qualquer alternância no poder. Nem na África do Sul, nem em Angola, nem na Namíbia, nem no Zimbabwe.
Também é claro que a segunda força política, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), contestou os resultados, como já vem sendo habitual, falando de fraude e de manipulação. Já fora assim há cinco, há 10, há 15 anos. Contestar, fazer muito alarido e depois, acabar por aceitar, ao fim de algumas semanas ou meses.
Quanto ao terceiro grupo existente, o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), bem mais recente do que os outros dois, ainda não teve quaisquer hipóteses de se aproximar da força dos outros dois. Contentou-se com a representação de uma franja menor do eleitorado, sem qualquer possibilidade de levar à chefia do Estado o seu líder, Daviz Simango, que dirige o município da Beira, tradicionalmente o segundo do país, em importância.
Uma paz frágil
O mais recente acordo de paz não tinha sequer dois meses. Os meios oficiais de comunicação social eram claramente favoráveis à Frelimo. Nada ainda estava nem está solidificado. Teme-se, hoje como há dois ou três meses, o regresso à violência. Mais de dez milhões de moçambicanos foram chamados a escolher um novo Presidente da República, 250 deputados e 811 membros das assembleias provinciais. Ao escrutínio concorreram três candidatos presidenciais e 30 coligações e partidos políticos.
O presidente da Renamo, Afonso Dhlakama, sempre tão polémico, tão controverso, garantiu que não iria recorrer à violência, depois destas eleições gerais de Outubro, e manifestou-se disposto a negociar com a Frelimo, que está no poder desde que foi proclamada a independência, em 1975.
A Renamo foi pela primeira vez maioritária na cidade de Nampula, tradicionalmente a terceira de Moçambique, capital da província do mesmo nome, e reivindicou a vitória em todos os círculos eleitorais do centro e norte do país, bem como uma votação muito expressiva na região sul. Como tal, não reconheceu os resultados que ao longo da primeira semana após a ida às urnas foram sendo divulgados pela comissão eleitoral moçambicana.
Repetição das eleições?
Chegou-se a admitir que o chamado "partido da perdiz" desejasse a repetição das eleições, ou então a constituição de um Governo de Unidade Nacional (GUN), com Filipe Nyusi na Presidência da República e Afonso Dhlakama como vice-presidente, situação que implicaria uma “mexida” na actual Constituição.
“Não é preciso violência”, declarou o líder da Renamo, em conferência de imprensa, recusando que lhe chamassem belicista: “Não vou andar aí aos
tiros”.
O presidente do maior partido da oposição considerou que as eleições gerais foram uma “fantochada”, mas manifestou disponibilidade para dar prioridade ao
diálogo “com os irmãos do Governo de Moçambique”. Só que, os dias foram passando e os resultados totais tardavam em ser divulgados, numa prática muito pouco de acordo com o que normalmente acontece em países mais desenvolvidos.
Se em Portugal, Espanha ou França se conhecem normalmente todos os resultados de um acto eleitoral 24 horas depois do fecho das urnas, em Moçambique ainda é necessário esperar muito mais de 10 dias para se saber ao certo quais as percentagens que foram obtidas por cada uma das listas.
“Não estamos preocupados com a propaganda na rádio e na televisão, onde aparecem pessoas a dar os parabéns a Nyusi. Isso é propaganda barata”,
declarou Dhlakama, que acusou “alguns estrangeiros” de “vergonhosamente” terem declarado as eleições livres e transparentes, apontando o caso da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC).
"Clube de amizade"
“Isto é extremamente perigoso. O nosso continente é conhecido por dirigentes corruptos, ladrões, criminosos”, afirmou Dhlakama, referindo-se a “um clube de amizade” dos velhos partidos que “não querem abandonar o poder”. Alegação que abrangeria, para além da Frelimo, o MPLA, o ANC, a SWAPO e a ZANU-Frente Patriótica.
No seu entender, seria necessária acabar com a ideia de que “há uma democracia para os europeus e para os americanos e (outra) para os indígenas africanos”.
O líder da Renamo perguntou quantos milhares de pessoas não votaram por falta de cadernos eleitorais, mencionou assembleias de voto que só abriram depois das 12h00 e outras que que encerraram quando ainda havia filas de eleitores.
Dhlakama referiu ainda a descoberta de urnas previamente preenchidas com votos a favor do seu adversário da Frelimo, na Beira, Ilha de Moçambique e
também em Quelimane e na província de Tete: “Estas são as quintas eleições com fraudes em Moçambique”.
Alguns dados novos
Há novos actos de violência em perspectiva, mas também há outras novidades no Moçambique de hoje em relação ao de há uma década. Em pouco mais d cinco anos de existência, por exemplo, o MDM, além de estar a cimentar a sua posição no parlamento, onde fica com algumas dezenas de lugares, já governa quatro municípios, nomeadamente Beira, Quelimane, Gúruè e Nampula.
Claro que não se vai voltar à guerra civil de 1976/1992; não há condições para isso. Mas a oposição fará agora com que a Frelimo tenha de suar muito mais se na próxima ida às urnas, em eleições gerais, desejar garantir mais de 50 por cento dos votos que vierem a ser expressos. Lembre-se, aliás, que uma boa metade do eleitorado se absteve no dia 15 de Outubro, recaindo nessa metade abstencionista muitas das incógnitas quanto ao futuro. Será que alguém irá conseguir mobilizar quem até agora não se tem dado ao trabalho de votar?
O povo moçambicano mostra-se algo cansado de 40 anos com a Frelimo no poder e, pouco a pouco, começa a tirar-lhe o tapete, dando a entender que a médio prazo se possa caminhar para uma rotatividade. O partido que foi de Eduardo Mondlane e de Samora Machel é agora o elo mais fraco de uma vasta família na qual se inserem as forças dirigentes de Angola, da África do Sul, da Namíbia e do Zimbabwe.
A complacência dos observadores
Segundo os observadores internacionais, sempre tão complacentes, o escrutínio decorreu na calma, sem incidentes de maior, apesar das fogueiras, dos tiros e dos actos de vandalismo, que se toleram na África mas nunca seriam admissíveis na Escócia, na Catalunha ou na Córsega. São critérios, como se houvesse dois pesos e duas medidas.
Desde que não haja um número significativo de mortos ou que as fraudes não sejam excessivamente gritantes, a comunidade internacional fecha os olhos e já se considera satisfeita com uma relativa democraticidade do processo. Nunca se vai pedir a um país com 20 anos de multipartidarismo que apresente um sistema eleitoral tão perfeito como o daqueles que há 50 anos se efectuavam regularmente eleições. Há sempre uma certa tolerância em relação a dados que possam estar viciados.
Ao fim e ao cabo, o que mais interessa aos investidores internacionais é que Moçambique possua importantes reservas de gás natural, tanto se lhe dando que o país continue nas mãos da Frelimo ou que passe para as da Renamo, a velha guerrilha que nos primeiros anos de existência foi apadrinhada pelo regime do apartheid e pela Frente Rodesiana de Ian Smith. Isso são contos muito antigos, de que já ninguém gosta de ouvir falar. São coisas de há trinta e tal anos!
Angola não espera
Sem esperar que a contagem chegasse ao fim, o chefe de Estado angolano, José Eduardo dos Santos, felicitou Filipe Nyusi pelo resultado eleitoral que o candidato e a Frelimo alcançaram, dizendo que "testemunha, de forma inequívoca, a vontade do povo moçambicano a favor da continuidade governativa, em prol da Paz, tolerância, estabilidade, desenvolvimento e progresso económico e social".
Foi como que um respirar de alívio, da parte de Luanda, o saber que em Moçambique ainda continua na mó de cima, apesar de tudo, o partido que lutou de armas na mão para alcançar a independência. A Angola não lhe agradaria mesmo nada começar a perder aliados, como aconteceu há dois anos e meio, quando os militares da Guiné-Bissau deram um golpe de estado, impedindo que fosse eleito Presidente da República o então líder do PAIGC, Carlos Gomes Júnior.
Enquanto isso, a Missão de Observação Eleitoral da União Europeia manifestava preocupação com os atrasos no apuramento dos resultados: "Os prazos legais para o anúncio dos resultados distritais e provinciais, respetivamente dois e cinco dias após a jornada eleitoral, não foram, na sua maioria, cumpridos".
Para que não se dissesse que os observadores só tinham ido a Moçambique fazer uma certa espécie de turismo, a missão considerou que os diversos "incidentes, durante o processo de apuramento, aliados à ausência de uma explicação oficial pública sobre estas dificuldades, deterioram o que tinha sido um início ordeiro da jornada eleitoral".
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