quarta-feira, 6 de novembro de 2013
O exílio de Gungunhana na ilha Terceira
Foi publicado em Lisboa um livro sobre o último chefe do Estado de Gaza, que ia da Baía do Maputo ao Rio Zambeze. Mais uma oportunidade para falar de situações que aconteceram há cerca de 110/115 anos. A História também se pode aprender por meio da ficção.
Jorge Heitor
Em finais do século XIX, o oficial de cavalaria Joaquim Mouzinho de Albuquerque interna-se, ao serviço do rei D. Carlos, no império de Gaza, com o objectivo de subjugar as tribos à administração colonial portuguesa; para isso, porém, queima aldeias inteiras, mata os insubmissos e, desobedecendo a ordens superiores, captura com espectacularidade Gungunhana, filho de Mzila, que é conduzido para Portugal como troféu e que acaba exilado nos Açores até ao fim dos seus dias.
Apesar de recebido pelo povo e aclamado pela imprensa como um herói da pátria, a crítica ao comportamento pouco ético de Mouzinho de Albuquerque nos corredores do Palácio Real, a indiferença do governo em relação aos seus planos para África e a paixão nunca abertamente confessada pela rainha D. Amélia acabam por levá-lo ao suicídio, em 2 de Janeiro de 1902.
Mas, se a notícia escandaliza Portugal, a verdade é que é lida com entusiasmo e sentimento de justiça por um Gungunhana já velho e destroçado, que passa os dias escondido na floresta do Monte Brasil, o local que encontrou na ilha Terceira... que mais se assemelha à terra dos seus antepassados.
Com uma alternância de vozes narrativas que nos oferecem duas versões muito distintas do mesmo conflito, O Rei do Monte Brasil, um livro da autoria de Ana Cristina Silva, explora as memórias dos seus protagonistas às vésperas da morte, ilustrando-nos sobre a sua infância, as suas paixões marcantes, as atrocidades para as quais encontram sempre justificação e, de certa forma, a reflexão sombria sobre a decadência e a glória perdida.
"Ninguém me contou. Li no jornal que te mataste, Mouzinho. Tornaste-te um ser maligno que da terra dos mortos assombra a vontade dos homens. Fazes parte dos valoyi (espíritos malignos), que só sabem martirizar - espíritos que atiçam o desespero, atormentam os seres humanos e neles despertam instintos brutais. Onde quer que te encontres, és agora uma alma sem corpo, lançando mau-olhado, pragas e maldições. Encarnas o ódio sobrenatural em que o teu espírito insaciável compete com outros fantasmas mesquinhos e vorazes. Tal como em vida, és uma corrente maldita que se aproxima com rapidez do coração das trevas para conduzir mais homens em direcção à morte. Ocupas decerto um lugar cimeiro entre os demónios!".
É com estas palavras que começa a descrição feita por Gungunhana na obra da sociedade editorial Oficina do Livro sobre o líder moçambicano que acabou os seus dias exilado em Portugal, juntamente com seu filho Godide e com sete das mulheres que tinha. Instalados no forte de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, Açores.
"Enquanto foi régulo em África, tive poderes de decisão sobre a vida e a morte - e a necessidade dessa autoridade subsiste em mim, ainda não se desvaneceu inteiramente. Mas o destino traiu-me e a sorte alterou-se. O espírito do meu avô Manicusse (Sochangane) vê do alto todas estas mudanças e troça da minha condição. Para continuar a mover-me livremente nesta floresta e inventar uma África só para mim, tenho, porém, de fingir, de dissimular, de sorrir todos os dias ao governador, de dizer que gosto de aqui estar e mostrar-me grato pela liberdade que me concedeu de circular pela ilha". Este outro excerto do discurso atribuído a Gungunhana por uma mulher que é doutorada em Psicologia da Educação e se especializou na área da aprendizagem da leitura e da escrita.
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