quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Centro de Artes Contemporâneas da Ribeira Grande

A cultura do elefante Vai ser inaugurado em breve, no meu concelho, Ribeira Grande, um centro celestial de artes contemporâneas. É mais um elefante que já nasceu envolvido nas acostumadas trapalhadas de obras megalómanas, com derrapagens de estarrecer qualquer paquiderme. Orçamentado em 12 milhões de euros, já vai em não sei quanto de obras a mais, acrescido da insolvência do empreiteiro continental e dos sub-empreiteiros locais que ficaram a ver navios. É uma imitação da Biblioteca de Angra, porque nisto de invejas e bairrismos, nada como uma justa repartição das coisas do espírito, apanhando todos pela mesma bitola obreira de santa Engrácia. Só de pensar que, se aquilo tiver uma dúzia de salas, cada uma custará mais de 1 milhão! Presumo que estarão todas pintadas de ouro, daquele derretido em lingotes nestas prolixas casas manhosas de compra e venda de penhores. Somos grandes no consolo. Mas, ali mesmo em frente, há inúmeras famílias pobres que sobrevivem, sem direito a remuneração complementar, mais preocupadas com a barriga do que com o espírito. No Bairro do Bandejo, quando abrirem as portas de casa, hão-de curvar-se perante imponente novo-riquismo que lhes enfiam pelo quintal dentro. Ainda bem que o município de Ponta Delgada desistiu de ideia semelhante (sem que se livre de, antes, pagar grossa fatura a Óscar Niemeyer), calhando agora à Ribeira Grande, outrora centro industrial de riqueza reprodutiva, este enorme emplastro de gastos regionais. Uma região que importa quase 80% dos produtos hortícolas que consome, acha mais prioritário investir milhões no regalo da vista do que ter a enxada na mão. A mesma região que se mostra incompetente para reabrir o Museu Carlos Machado e incapaz de promover a literatura açoriana e os seus escritores, vai despender, ainda, mais uns bons milhares para rechear aquelas amplas salas de mobiliário rococó e mais outro tanto para manter em permanente atividade os motores do frenesim artístico do burgo. Já que falamos de surrealismo, sugiro que avancemos então para a compra da badalada coleção Miró para o espólio do centro de artes contemporâneas. Os polícias da cultura ficariam mais sossegados e acabava-se com esta triste novela dos quadros fustigados pelo provinciano vaivém londrino-alfacinha. Sim, porque atendendo ao seu custo, o elefante há-de ser alimentado com a mais elevada finura da 'vernissage' internacional. Desiludem-se os caros conterrâneos ribeiragrandenses, que já se imaginavam em romaria intelectual, sobretudo a partir da populosa vizinha Rabo de Peixe, em direção ao centro de artes para bisbilhotar o paquiderme, olhando para as doutas exposições como quem olha para um boi. Aquilo é para nível mais elevado, o que pomposamente costumam chamar de “turismo cultural”. Já estou a imaginar as dezenas de autocarros a saírem do terminal de cruzeiros, nas Portas do Mar, carregados de turistas excitados para chegarem à Ribeira Grande e contemplarem o admirável mundo novo. O mais certo é que, lá chegados, ficarão deslumbrados com as artes fuseiras do pão caseiro, chá da Gorreana e licor de maracujá... Pelos corredores oníricos do palacete de arte, já sem réstias de odores da antiga fábrica do álcool, hão-de deambular catrafadas de “boys” e “girls”, eles próprios lá colocados como símbolos vivos desta nova arte moderna - que é a política contemporânea – , a política de ir ao nosso bolso e enganar toda a gente. Resumindo: a Ribeira Grande, que não foi tida nem achada para o caso, vai ter que levar nas ventas com mais betão armado e com um filho que não pediu. É uma espécie de co-adoção, sem consulta prévia. Olha, que rica ideia para os políticos: porque não se faz um referendo? Pico da Pedra, Fevereiro de 2014 Osvaldo Cabral (Correio dos Açores; Diário Insular; Multimedia RTP-A; Portuguese Times (EUA); Lusopress Montreal) --

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