Todos nós ouvimos falar das terríveis notícias de uma Nigéria onde um grupo
terrorista islamita raptou 287 raparigas e a partir da qual o fundamentalismo
ameaça alastrar a outros países, a começar pelos Camarões. É esse um dos grandes
dramas da África actual, neste ano de 2014. Impõe-se uma reflexão.
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> Jorge Heitor
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> A federação nigeriana, grande mas
volúvel, extremamente populosa mas frágil, relativamente recente, está a sofrer
mais com as acções do grupo fundamentalista islâmico Boko Haram, que rejeita a
educação ocidental, do que durante a guerra civil que se verificou quando no
Sueste do seu território foi proclamada a República de Biafra, na década de
1960.
> No entanto, segundo o Prof. Wole Soyinka, Prémio Nobel da
Literatura, o rapto de 287 estudantes e outras atrocidades poderá tornar o
desfazer da unidade nacional menos provável, dado que tanto a maioria dos
muçulmanos do Norte do país como os cristãos que vivem no Sul tendem a entender
que caminhar juntos poderá ser a melhor forma de evitar uma tragédia ainda muito
maior.
> Se bem que com menos repercussão internacional do que quando, em
Maio de 1967, o governo da região oriental decidiu proclamar a República de
Biafra, a actual chacina, o actual nível de violência que se está a verificar no
Nordeste da Nigéria, é uma das situações mais dramáticas por que passa a
federação nigeriana, que tantas fases tem atravessado, ao longo de cinco décadas
e meia, desde a proclamação da independência.
> O Prof. Soyinka entende
que o que se está a passar, desde que o Boko Haram, fundado em 2002, iniciou as
suas operações militares, em 2009, é já bem pior do que aconteceu durante a
guerra do Biafra, de 1967 a 1970, quando os Igbos do Sueste quase conseguiram
estrelhaçar a Nigéria em diferentes regiões étnicas.
>
> O horror
de Soyinka
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> Agora com 80 anos, o dramaturgo Soyinka, que esteve
dois anos preso pelos militares sob a acusação de ter ajudado os separatistas do
Biafra, mas que em 1986 foi o primeiro africano a conseguir o Nobel da
Literatura, encontra-se perfeitamente horrorizado pela forma como três milhões
de pessoas estão a ser afectadas pela actividade do Boko Haram.
> Ataques
à bomba, assassínios e raptos constituem o modo de acção dos fundamentalistas
para tentarem criar um estado islâmico, a exemplo do califado que já foi
proclamado na zona de fronteira entre a Síria e o Iraque.
> Os militantes
de semelhante seita sentem-se influenciados pelo versículo do Corão que diz que
quemnão for governado de acordo com as revelações de Allah a Maomé é um
transgressor, um apóstata.
> Para eles, é proibido aos muçulmanos
participar em qualquer actividade política ou social que tenha algo a ver com a
sociedade ocidental, incluindo nisto participar em eleições, andar de calça e
camisa ou receber educação secular.
> No entender do Boko Haram, a
federação nigeriana é dirigida por ateus, mesmo que o Presidente seja
muçulmano.
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> Os cruzados de Allah
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> O grupo atacou
muitas escolas do Norte do país e queimou veículos na capital federal, Abuja,
num verdadeiro espírito de cruzada contra todos os que não pensam exactamente
como ele, que a si próprio se refere como Jama'atu Ahlis Sunna Lidda'awati
wal-Jihad, "pessoas empenhadas na propagação dos ensinamentos do Profeta e na
Jihad".
> Os habitantes da cidade de Maiduguri, no Nordeste da Nigéria,
onde o grupo tem a sua sede, é que lhe chamam Boko Haram, o qua na língua Hausa
significa mais ou menos que "a educação ocidental é proibida".
> Boko
significava inicialmente falso, mas passou a ser sinónimo de educação ocidental,
e Haram é sinónimo de proibido.
> O fundador do Jama'atu Ahlis Sunna
Lidda'awati wal-Jihad, Mohammed Yusuf, foi morto em 2009 e sucedeu-lhe Abubakar
Shekau.
> Milhares de pessoas têm morrido, essencialmente no Nordeste da
grande federação nigeriana, e em 2013 os Estados Unidos incluíram o grupo na
lista das organizações terroristas.
> Aliás, desde o califado de Sokoto,
que governou partes do que é agora o Norte da Nigéria, do Níger e do Sul dos
Camarões, até haver sido controlado pelos britânicos, em 1903, que alguns dos
muçulmanos de tal região resistem às tentativas de serem educados segundo o
modelo ocidental.
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> As raízes de um problema
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> Com
muitos muçulmanos a recusarem que os seus filhos frequentem escolas de modelo
ocidental, o carismático militante islamita Mohammed Yusuf criou em Maiduguri,
no ano de 2002, o tenebroso grupo a que hoje damos normalmente o nome de Boko
Haram, mesmo que essa não seja a sua designação oficial, conforme acima já se
explicou.
> Muitas famílias muçulmanas pobres de toda a Nigéria e até
mesmo de países vizinhos colocaram os filhos na escola islâmica que Yusuf montou
junto a uma mesquita, como primeiro passo para a almejada criação de um Estado
islâmico. E os estudantes foram evoluindo para recrutas de um movimento
jihadista.
> Uma série de aldeias do Nordeste passou a ser atacada pelos
defensores do integralismo muçulmano, que lançaram bombas e dispararam tiros
contra igrejas, num modo de acção em tudo contrário ao desejável ecumenismo, no
qual os fiéis de diferentes religiões conseguissem coexistir em paz.
>
Centenas de aldeões têm sido mortos desde que em Abril as 287 meninas foram
raptadas na localidade de Chibok, no estado de Borno.
> As jovens
continuam desaparecidas e o Presidente Goodluck Jonathan tem sido criticado pelo
seu relativo silêncio em relação a este problema; mas ele explica-se: "Tenho-me
mantido discreto quanto aos contínuos esforços dos militares, da polícia e dos
investigadores para encontrarem as raparigas. Preocupa-me profundamente que o
meu silêncio seja interpretado pelos que me criticam como sinónimo de inércia ou
fraqueza".
>
>
> Quatro anos de calvário
>
>
"Desde 2010, milhares de pessoas têm sido feridas, raptadas ou forçadas pelo
Boko Haram, que procura subverter o país e impor a sua ideologia a todos os
nigerianos. O meu Governo está determinado a tornar isso impossível. Não
sucumbiremos à vontade dos terroristas", escreveu o Presidente Jonathan no
jornal Washington Post.
> A coordenação entre os diferentes países é
entendida como a chave para que se consiga impedir novos raptos e Jonathan vai
falar disto na próxima Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Iorque, no
mês de Setembro.
> "O terrorismo não conhece fronteiras", sublinhou o
Presidente da Nigéria, que pretende um maior intercâmbio entre os serviços
secretos de diversos países, sob a égide das Nações Unidas, de modo a que se
combata o terror tanto na África como no Médio Oriente ou em outras
latitudes.
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> A herança do passado
>
> Quando se fala
em fronteiras, deveremos até recordar que as da Nigéria são algo artificiais e
relativamente recentes, pois que o que havia por ali há 120 anos eram impérios,
um califado, reinos, regulados, cidades-estado e até mesmo pequenas repúblicas
ao nível de aldeia, num conglomerado enorme ao qual se impôs a colonização
britânica.
> Os territórios do califado de Sokoto e dos impérios de Yoruba
e do Benim alargavam-se até para além das actuais fronteiras da Nigéria, quando
principiou o século XX; de onde se vê que uma nova realidade não se consegue
consolidar em apenas 90 ou 100 anos, sendo necessário muito mais tempo do que
isso para que as coisas estabilizem.
> A escravidão e as relações
semi-feudais que se verificavam nos emiratos e noutras entidades de que era
feito o actual conjunto nigeriano ainda pesam no contexto actual de um
conglomerado de alguns 180 milhões de pessoas que não têm de forma alguma uma
História comum. E é também isto o que importa ter em conta sempre que se debatem
os problemas da Nigéria, que são extremamente complexos.
> Um dos grandes
problemas da República Federal da Nigéria é, não o esqueçamos, ter duas centenas
e meia de grupos étnicos, a começar pelos Igbos, pelos Iorubas, pelos Hausas e
pelos Fulas, congregando estes dois últimos grupos 29 por cento da população
total e sendo muçulmanos, como o é metade da população em geral.
> Ter 250
etnias, falar mais de 550 línguas e ainda não haver conseguido alfabetizar
sequer 70 por cento da população é um peso muito grande para um dos oito países
mais populosos do mundo, país que sonha com o estatuto de membro permanente do
Conselho de Segurança da ONU.
> Quando a este panorama ancestral, à
corrupção endémica, ao grande número de pobres e ao elevado nível de desemprego
se junta agora o extremismo do Boko Haram, surge uma enorme bomba-relógio de
efeitos imprevisíveis. O futuro próximo não se apresenta risonho para a
plurifacetada sociedade nigeriana. E de bem pouco lhe servirão o petróleo, o gás
natural, o chumbo, o minério de ferro, o carvão e o zinco. O mais importante de
tudo são as pessoas, não os recursos naturais.
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