terça-feira, 3 de março de 2015

Boko Haram é dominado pela etnia Kanuri

A rebelião do Boko Haram, na Nigéria, e a sua repressão já deixaram mais de 13 mil mortos e um milhão e meio de desalojados desde 2009. Neste contexto, as eleições presidenciais e legislativas, que eram para ter sido em Fevereiro, foram adiadas por seis semanas, para o fim de Março. E o problema, bastante complexo, poderá não se ficar por aqui. Jorge Heitor O líder do Boko Haram, Abubakar Shekau, ameaçou impedir a concretização das eleições gerais previstas para dia 28 de Março na Nigéria. E fê-lo no primeiro vídeo divulgado por aquele grupo fundamentalista na rede Twitter, numa altura em que se está a verificar uma nítida mudança de táctica da organização no que diz respeito às suas comunicações com o resto do mundo, uma vez que elas se estão a tornar muito mais sofisticadas. Tivesse ou não havido essa ameaça explícita, os peritos em assuntos da região já calculavam que poderia muito bem ser impossível votar numa parte do Nordeste da Nigéria, onde se centra a actividade do grupo de Shekau, entretanto também alargada aos Camarões, ao Chade e ao Níger. As eleições já tinham sido adiadas seis semanas, de 14 de Fevereiro para 28 de Março, tanto devido aos ataques do Boko Haram como a dificuldades logísticas; e ficou no ar a hipótese de nem tudo ficar devidamente esclarecido antes de Abril. Se em algumas zonas do país não tiver sido possível votar no fim de Março, terá de se ir para uma segunda volta, algumas semanas depois, continuando assim em suspenso a grande e volúvel federação que é a Nigéria. Insegurança generalizada A violência destes últimos meses tem sido sobretudo no Nordeste do país, mas também no Sul, anteriormente relativamente poupado pela instabilidade, que está a ganhar uma dimensão regional, tocando de igual modo os Camarões, o Chade e o Níger. Desde as alturas do Maciço de Air, no Sara, até às fronteiras do Sudão e do Sudão do Sul, nada é agora seguro, numa África que teima em viver permanentemente agitada, muito longe dos dias relativamente calmos que vamos tendo em Portugal, na Espanha ou na França. Na estrada de Maiduguri, no Nordeste da Nigéria, violentos combates têm colocado frente a frente o Exército do Chade e combatentes do Boko Haram, que poderão totalizar 6.000, segundo cálculo dos serviços secretos norte-americanos. Os Camarões, o Níger e o Chade colocaram as suas tropas ao serviço da Nigéria, procurando mobilizar um corpo de 8.700 homens contra o grupo terrorista Boko Haram, cujo comportamento tanto se assemelha o do Estado Islâmico do Iraque e do Levante. São como que as duas faces de uma mesma moeda: o fundamentalismo islâmico, que tanto se pode revelar no Mali como nas margens do Lago Chade e nas bacias do Tigre e do Eufrates. Um perigo subestimado O Presidente nigeriano, Goodluck Jonathan, reconheceu em Fevereiro ter subestimado a capacidade do Boko Haram, apesar de o escritor Wole Soyinka já ter considerado há muito que o que se passa com o Boko Haram é muito mais grave do que aquilo que aconteceu durante a guerra do Biafra, travada no Sueste da Nigéria entre 1967 e 1970. Nos últimos seis anos, as forças armadas nigerianas têm sido incapazes de travar a expansão do fundamentalismo islâmico, pelo que foi agora necessário o Exército do Chade assumir o comando da luta regional contra tal perigo, que aliás já se fazia sentir a algumas dezenas de quilómetros da capital chadiana, N'Djamena. Por ter andado muito distraído, Goodluck Jonathan poderá agora não ter qualquer hipótese de ser reeleito, face ao desafio constituído pelo candidato Muhammadu Buhari, antigo chefe de Estado, num dos períodos em que os militares estiveram no poder. Teme-se bastante uma espécie de repetição da crise de 1993, quando foi detido o candidato Moshood Abiola e subiu ao poder o general Sani Abacha, pelo que todo o mês de Abril vai ser de uma tensão constante, prejudicando bastante as aspirações da Nigéria a ter um lugar permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas. A maior economia africana Há quem lhe queira chamar a maior economia africana, mas a verdade é que o Produto Nacional Bruto da Nigéria não ultrapassa os 3.280 dólares per capita, bem inferior ao da África do Sul. E a construção e os serviços, mais do que o petróleo, é que poderão ajudar agora os 184 milhões de nigerianos, divididos de um modo geral entre uma parte setentrional muçulmana e uma metade meridional cristã. A necessidade de levar até ao fim as eleições, num clima razoável, e o imperativo de controlar de forma eficaz o Boko Haram andam de mãos dadas, para que daqui a alguns meses já se possa circular com alguma segurança por terras como Sokoto, Kano, Zaira, Maidougari, Jos e Bauchi. A estabilização da Nigéria, bem como a do Mali, do Níger e do Chade, é essencial para que milhares e milhares de homens desesperados não se metam a atravessar o Sara, rumo ao Mediterrâneo, tantas vezes para ir morrer à vista de Lampedusa, de Malta ou da Sicília. A corrupção e as deserções têm de acabar, se a federação nigeriana realmente pretender acabar com o Boko Haram e passar a uma nova fase da sua existência, sempre tão periclitante desde a obtenção da independência, em 1960. Uma desgraça de militares Longe de contribuírem para a resolução dos problemas federais, as Forças Armadas da Nigéria têm contribuído muitas vezes para o sofrimento geral, impedindo o conjunto de se afirmar claramente como um dos grandes países do mundo; e uma autêntica potência regional, capaz de dar cartas na Serra Leoa, na Libéria, na Costa do Marfim, no Gana, no Burkina Faso, no Togo e no Benin. Apesar de serem constituídas por 80.000 homens, com dezenas de aviões de combate e oficiais altamente qualificados, as tropas nigerianas têm-se coberto de vergonha ao serem incapazes de neutralizar o Boko Haram, que as deixou pelas ruas da amargura. Um total de 11.000 vítimas em seis anos, 4.000 das quais só em 2014, são o resultado da incapacidade do Presidente da República, do Governo e dos militares para travar o passo aos fundamentalistas islâmicos, que parecem imparáveis. Antes, as Forças Armadas ainda eram coordenadas, rigorosas profissionais, mas agora, como explica o investigador Samuel Nguembock, já não se apresentam como um corpo unificado. O Presidente da República não controla o Estado-Maior General e este não controla as unidades que estão no terreno, diz outro especialista, Marc-Antoine Pérouse de Montclos. Toda a cadeia de comando se tem estado a desmoronar. O factor Kanuri Um dos aspectos de que pouco se tem falado, ao abordar o movimento jihadista e salafita que atormenta o Nordeste da Nigéria, é o de ele ser essencialmente constituído por elementos de etnia Kanuri e grupos a ela associados. O Boko Haram é dominado por um grupo étnico que representa apenas cerca de oito por cento de toda a população muçulmana nigeriana. Não é propriamente uma rebelião tribal, no sentido clássico da expressão, mas teve as suas raízes, no início deste século, sob a direcção de Mohammed Yusuf, na cidade de Maiduguri, de maioria Kanuri, capital do estado de Borno, e contou até com o apoio do então governador estadual, Ali Modu Sheriff, que se manteve no cargo até 2011. Actualmente, para além de se tratar de um movimento que defende uma alegada pureza de certos princípios islâmicos, o Boko Haram também tende a reconstituir as estruturas políticas que existiam na região antes da colonização britânica, no tempo dos impérios de Bornu (1380-1893) e de Karem (ainda mais antigo). Por isso mesmo é que as actividades deste movimento jihadista não se restringem ao Nordeste da Nigéria, antes penetrando em territórios do Níger, do Chade e dos Camarões que outrora, durante muito mais de 500 anos, fizeram parte do conjunto político Bornu-Karem. Certos militares nigerianos, imbuídos de sonhos do passado, de memórias míticas de uma grandeza antiga, chegam a informar o Boko Haram dos movimentos determinados pela oficialidade. E até lhe vendem armas, mormente nos casos em que são privados de pré, ou salário, por comandantes pouco escrupulosos, que na guerra só vêm uma forma de enriquecimento. É toda esta complexidade de problemas, com o peso esmagador da História a influir na actualidade, que temos de ter em conta quando nos debruçamos sobre o que é que está a acontecer na Nigéria, um país relativamente recente, sobre o qual ainda pairam muitas sombras do passado. Só se o fizermos, no âmbito de uma reflexão geopolítica, é que poderemos começar a pensar no que irá acontecer depois da ida às urnas: será o Boko Haram devidamente controlado ou a falta de segurança ainda se agravará, com fortes implicações para todo o enorme país e para a região na qual ele se insere? (este artigo vai sair em Abril na revista missionária comboniana Além-Mar, por encomenda da qual foi escrito)

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